Um Dia

Um dia houve alguém por aqui que era diferente.  Que havia saído do mesmo lugar, que passou pelos mesmos problemas, que viveu as mesmas vivências de menino, mas que era diferente.
Um dia houve alguém que enxergou cedo que a vida seria mais confusa do que ele imaginava, que seus espelhos estavam trincados, e as imagens distorcidas da realidade. 
Um dia ele acreditou que alguém perto morresse, ele poderia morrer também, e chegou até a questionar porque não ele ao invés dela. 
Um dia houve alguém que não entendia direito porque o amor não existia quando se diziam amar, e porque aqueles que ele amava não estavam juntos, e não se entendiam mais. 
Um dia ele foi posto à prova, de todos os lados, conversas daqui, conversas de lá, um errado, o outro certo. Ele no meio. 
Um dia houve alguém que foi tirado do seu local e posto em um universo estranho, de pessoas superiores, com idéias que ele jamais havia visto ou pensado existir. Um dia ele achou que aquilo fosse ruim, mas hoje entende o tamanho da importância daquele tempo. Ali, aprendeu e notou que a vida poderia ser muito mais do que ele conhecia, e que se tivesse coragem, poderia transpor barreiras.
Um dia houve alguém que ainda jovem foi apresentado a música, e a sua vida mudou. Não por sucesso, mas por filosofia. A partir dali ele entendeu que poderia sonhar, e que quanto mais se aprofundava, mais expunha as verdades, e junto com ela as feridas.
Um dia houve alguém que por seus sonhos deixou onde vivia e foi de encontro ao seu destino. Lutou anos e anos, conheceu pessoas boas, pessoas más, sucesso e frustração. Viveu anos como um rei, com apoio naquilo que acredita e força pra seguir. Consegui sentir o sabor e o amargo de estar ali. Aprendeu. Subiu e novamente desceu. Sem sequelas.
Um dia houve alguém que valorizou demais a amizade, que achava que conseguiria ensinar a alguns aquilo que viveu, aquilo que saboreou. Achava que com exemplos e incentivos, eles também chegariam lá, e saberiam ouvir e ver, saberiam absorver e entender, aprender e respeitar. Mas eles foram incapazes de ver assim.
Um dia houve alguém que sofreu noites e noites tentando entender ou aceitar a realidade que lhe cabia, que pessoas se vão, que lembranças ficam, e elas geralmente machucam mais que afagam. 
Um dia houve alguém que pensou ser querido, que acreditou que seria admirado de onde surgiu, que nunca teve a soberba ou foi esnobe mesmo com motivos pra isso, e que teve muita alegria em transmitir alegria.  Um dia ele sentiu prazer em ter todos por perto, e sonhou ser capaz de juntá-los em um único local, para sempre. 
Um dia houve alguém que procurou demais por algo chamado perfeição, e aprendeu que ela não existiria, e que as qualidades devem superar os defeitos, e que só assim duas pessoas podem viver juntas. Um dia foi mais importante o perfume que o olhar, o beijo que o afago, o arranhar que as mãos dadas. 
Um dia houve alguém que esteve junto com todos vocês. Alguém que podia e sempre somou muito aqueles que foram capazes de enxergar seu brilho, seu jeito ímpar, sua sinceridade que dói mas que quer sempre o bem. Um dia estiveram tão próximos que poderiam ter caminhado juntos até o fim, mas eles são cegos demais para isso.
Um dia houve alguém que deixou pra trás tudo por descobrir que tudo que havia ficado pra trás já não era tão importante pros outros como era pra ele, e então ele deixou ir. Abriu mão de sofrer e se martirizar, e de tentar razão onde não existe razão. A vida segue.
Um dia houve alguém que poderá ser lembrado, se as lembranças ainda fizerem parte da memória daqueles que hoje sofrem de esquecimento. Um dia eles poderão repensar e ver que estavam tão errados, que me fizeram apagar o passado.

Um dia houve alguém por aqui que talvez deixe saudades, mas que hoje precisa desaparecer pra que ela apareça. Um dia eu estive do seu lado. Hoje estou aqui.

Serventias

Esta é uma porta entreaberta, encostada. Basta um empurrão e você pode entrar. Ouça o ranger das antigas dobradiças, madeira velha, dissolvendo com o tempo, cheiro de passado. Talvez você não queira sujar suas mãos ao encostar. Marcas de dedos, marcas de mãos inteiras. Alguém já esteve ali. Você vê unhas, rasgando os entalhes, alguém com raiva, que empurrou com força tentando entrar mas desistiu. Pedaços estão faltando, arrancados, como se quisessem levar como lembrança ou tentando destruí-la.
Um empurrão ela avança e teima em voltar, se fecha sozinha. Não há trincos, fechaduras, chaves. Apenas a força natural de quem sempre se manteve ali semi aberta. 

O cheiro é forte, cheiro de dor. Clima pesado e denso, tão denso quanto o que se esconde em seu interior. Uma fenda não revela luz, é escuro e frio, e ao mesmo tempo atraente. O que há de tão secreto? O que se esconde ali.
Há escritos em seu corpo, mensagens sem assunto, autores desconhecidos. Você vê paixão, palavras de amor, dedicatórias. Você vê recados, meias palavras, convites. Rabiscos sobre rabiscos. Seus olhos descem quase ao rodapé, e você percebe chutes, pedaços quebrados, alguém que não conseguiu entrar. Há dizeres com ódio, raiva, rascunhos de frases e desenhos inacabados, fotos rasgadas e jogadas ao chão, desfiguradas. Quem quer que seja passou por ali com muita vontade e terminou com muita frustração. Não percebeu que a porta estava sempre aberta a quem tinha coragem e malícia para entrar.
Corra a mão sobre os detalhes, farpas ardem ao encontro dos dedos.
A parte de cima é mais pura, menos violenta, há versos e poemas, inteiros. Foram deixados ali por quem foi capaz de entrar, sentir, respirar. Eu vejo amor, satisfação, alegria. Prazer por ter estado ali, feito parte de um momento ou personagem de uma história longa, cravou e marcou seu nome.
Estranho, sim, estranho. Não há nomes rabiscados nesta porta. Iniciais, pseudo-assinaturas que permitem dedução, mas não há nomes. Vejo setas e círculos, apontam a alguém, ou à mim. Talvez eu não entenda a mensagem ou talvez foram feitas para que eu realmente não decifrasse.

Eu nunca tranquei, reformei, substitui este local. Ela continua a mesma, mesma porta. Tinta velha, sem cor, desbotada e maltratada. Ainda entreaberta, ainda sem trancas.
Seja bem-vindo, bem-vinda. Mas não empurre, encoste. Não chute, não destrua mais do que já está. Não tente fecha-la, ninguém jamais conseguiu. Se por vontade quiser deixar um recado, arrume um espaço. Talvez ali, ao lado de quem você não goste, talvez ache alguém que te traga lembranças boas, ou um espaço só seu, talvez um pouco mais difícil este ultimo.
Um empurrão e você entra. Pode sair sem ver nada, como pode levar consigo mais que um detalhe. É escuro e turvo para aqueles que não enxergam de olhos fechados. Você é capaz de sentir o ar úmido e frio? Um calafrio na espinha. Você está indo bem. Parabéns.

Aqui dentro guardo coisas tão reais que tranca-las seria me fechar pra sempre onde ninguém fosse capaz de achar. Eu poderia fazer isso...
...mas por enquanto, se quiser saber mais, basta empurrar.

Turvo

É uma loucura que ninguém percebe, invisível mas sensível. Tira o precioso sono, te zumbifica. São tantos porquês, serás, deveriam, poderiam. Talvez sejam subtraídos desta angústia os ignorantes. 
Eu me conheço bem, sei das minhas fraquezas e fortalezas, dos tiros que dou no pé pra aprender a não errar. Eu as vezes perco a sanidade, ou ela se desprende de mim, de me deixar quieto no meu canto. As vezes eu só queria estar quieto no meu canto. 
Eu mal te conheço, minha parceira de madrugadas que invade e atropela, me chuta do sono em míseras quatro horas e me deixa lembranças na cara durante todo dia. Uma vadiagem sem esbórnia. As vezes eu só queria desmaiar e acordar depois de uns pares de dias.
Onde eu estarei daqui dois, três anos? Os passos que vou deixando marcados aqui, no chão de onde cresci, não se apagam com o tempo, estão firmes e fortes, mesmo hoje sendo seguidos por quase ninguém. Lá se vai aquela pessoa, que outrora era presente, mas que não se fazia aparecer. 
A melodia é melancólica, remete ao poço fundo da depressão. Fala de adeus, de mudanças, de deixar para trás, de romper com tudo que precisa ser rompido. E quem além de mim hoje em dia se importa? Tem sido frio e meu rosto não nega, mas eu me perfaço. E a cada angústia homeopática que sinto, procuro suborna-la e me tornar invisível, me escondo dentro de mim para tentar escapar. Hoje você não entende e ontem você não existia. Eu finalmente estou deixando este lugar.
Incompreensão, intolerância e ignorância. Quantos desses detalhes me moldaram e transformaram tudo que eu acredito. Eu não posso e não devo mais lutar pelo que não é sagrado. Eu ouço as pequenas falar entre as paredes, suspiros e sussurros que dizem por seus ombros, lhe conta a verdade e tudo fica tão claro. Paranóia pode ser.
Não escrevo para ninguém, alias raros os momentos que lhe dou tamanha honra. Dentro deste cesto cheio de folhas soltas, eu, ele, nos, somos os personagens neste caminho constante ente céu e inferno. Eu vejo rosas dentro de espinhos, aquilo que se inverte as vezes quando você percebe que estamos apenas em um caminho passageiro.
Talvez um dia eu sucumba a algo mais forte, algo que me impeça de mover os dedos habilmente para deixar aqui os espasmos da minha mente, e provavelmente quando este dia chegar eu já esteja tão cansado que agradeceria um descanso.
É evidente a hora de dizer boa noite, fechar as portas que ficaram e os trincos que ainda restam, e de mãos dadas com os sentimentos partir, abraçando o meu incompreendido destino. 
Estas notas de piano redundantes e profundas, me levam e me trazem, dentro de um redemoinho, sustentando minha insanidade. Talvez eu não seja tão normal quanto os normais acreditam por não acreditarem. Mas eu estou aqui, virando a mesa novamente, chutando cadeiras e pondo tudo nas apostas. Eu me lanço ao mar, apavorado mas confiante.
Sou apenas meu próprio salvador, meu alicerce, meu deus. O que sinto aqui dentro é tão pesado, é tão claramente turvo, rebate entre as batidas do peito. Tão confuso quanto minhas palavras são meus poréns, desvios de curso, paradas bruscas. Agora não há paradas no meio do caminho. Eu espero a mudança de ares. De temas.
Você percebe aqui os meus gritos vazios, você lê aqui meus gritos vazios, que parecem ser ouvidos só por mim. Você ignora os fatos e eu ignoro as mentiras que me impedem de crescer. Enlouquecedor.
Poderia apenas dizer adeus hoje, mas eu volto.