Voando...

Daqui eu vejo muitas pessoas. Estou um pouco assustado, pois não esperava alguns rostos, nem tão pouco algumas reações. Eu deveria estar feliz, pois lembram-se de mim, mas peraí, sequer me viam há anos. Mas que conveniente. Por essa não esperava.
Vou continuar...
Vejo muitos amores, passados, sofridos, doces de relembrar e amargos de engolir, e estão todos eles aqui. Pena eu não poder mais dizer algumas verdades, fica para a próxima. 
É engraçado ver como as diferenças se foram, e a perda une quem se odeia, pelo menos por alguns instantes - de falsidade?

Alí está meu avô, eu lhe disse, eu sabia, você é muito mais forte, e muito corajoso de encarar mais esta realidade, sozinho. Não me recordo se esqueci de dizer algo que precisava, mas sinto um aperto no peito como se algo me faltasse. Nunca vou aliviá-lo. Onde está minha avó?
Mais rostos, quantos rostos. Esses nem me lembrava mais. Décadas sem um telefonema ou contato. Muito parte da minha culpa também, todos nos afastamos. Lembro de nossa infância, e só. Estas pessoas não me conheciam mais.
E se eu parar por um momento de questionar tudo que vejo e apenas sentir? Não há som, luz, sangue ou dor. Deixe-se levar, aceite o inevitável, e observe pela última vez. E eu nunca acreditei ser capaz. Doce ilusão, esta tudo tão claro.
Meu amigos. Aqui existem tantas surpresas que eu já desisti de entender. Onde você andou? E porque eu vejo tantos discursos? Nunca fui ouvido, fui escutado de longe apenas. Nunca fui lido. O que são estas folhas em suas mãos e está imagem em suas camisetas? Eu achava que não poderia sentir mais a raiva, mas não se iludam, ela não nos deixa. Vou desistir de entender meus amigos aqui, eu quero paz. Não continuem a fingir, por favor. Aqui quem deixou de falar algo foram vocês.
Daqui eu vejo todos. Engraçado, perdi o temor de alturas, me parece assustadoramente elevado onde estou. Não, não é o céu, não existe céu, ou inferno. Mas tudo é muito alto.
Impressionante como sua existência é fácil de resumir. Em um ou dois salões. Em um pequeno comboio de carros. Aliás, tudo isso foge ao que pedi. "Obrigado" minha tia, por não levar a sério quando eu lhe disse o que queria, "nada de cerimônias!".
Vejo o lado bom, olha alí, meu pai e minha mãe de mãos dadas. Eu jamais vi isso em toda minha vida. Confesso que me parece tão surreal que não sinto como se gostasse. Causa uma estranheza absurda. Os dois juntos é hipotético e boato.
Eu sempre pensei que tudo isso aconteceria. Desde sempre. Só não sabia que seria possível. Pelo menos uma coisa eu tinha total razão.
Foi difícil, foi doloroso, foi longo até demais. Eu estava tão cansado de tentar achar as respostas. Não haviam respostas. Deveria ter entendido.
Sabiam que se pode chorar daqui? Pois acredite. Eu enxugo as lágrimas ao ver estas que foram as últimas pessoas que ainda acreditavam em mim, que ainda me tinham e sonhavam em ter por mais tempo. Como ficaram sabendo? É, as noticias correm. 
Ver vocês que estavam dia a dia comigo, me deixou mais aliviado. Viram? Eu disse que estava cansado... O "não fala assim, calma", não adiantou muito, mas vocês sabiam que eu era teimoso. Ergam-se, as únicas pessoas que realmente são dignas dessas lágrimas.

Finalmente posso respirar. É tão simples agora. Tão natural. Minha cabeça não me escraviza, meus olhos não estão cansados. E ouço minhas canções preferidas ao fundo. Uma desejável combinação de fatores. Pelo menos agora eles fazem todo sentido.
Para onde vou? Se vou. Para trás, meu, restaram mais de 200 confissões ignoradas. Mais de 200 lembranças de tudo que eu lutava contra e a favor. Tenho quase certeza de que agora elas irão se tornar obras-primas. Façam bom proveito.
Pouco importará na verdade...
...um beijo.

Agridoce

O sabor da minha vida é agridoce. Como lamber uma navalha e sentir um ardor e dor. Gosto de sangue, doce e quente, doente. Não existo perante aos olhos de ninguém além daqueles que não deveriam me ver. Um sofrido looping de rejeição e paixão. Um lago congelado, árvores tentando renascer. Um precipício tão alto que duvido que exista um fundo, um fim. 
Eu rezo. As vezes me encontro pedindo por clemência. Me enlouqueça, eu digo, me tire a sanidade e me faça não poder entender porque as flores murcham mesmo em tempos de primavera. Eu enterro e sepulto rios e rios de brilho.

Meu coração é um livro aberto em braile. Não me toque se não poder entender nada que esta ali. Não posso ser odiado para sempre, e amado, talvez quando eu amar. Talvez um pouco vergonhoso mas não falso. Os capítulos que se fecham se tornam história.
Hoje olho meu reflexo no espelho atrás de algo que me tire o foco e me de um sentido, tudo é tão frio e meu rosto sucumbe ao tempo. Nada é mais e tudo é menos, eu vou tentando encaixar algumas coisas e espero que essas peças se encaixem. 
Não estou acuado, não estou derrotado, não irei sucumbir. Mas não há vitórias porque eu não aceito vencer por nada. Confuso creio eu, mas de que isso importa? Eu sou posto à prova todo santo dia, e dias que não são santos também.

Lá fora a vida, rebate e renasce. São barulhos de mentes vazias, são o despertar de quem não acordou. Não quero pra mim esse tipo de fim, por favor não me faça cair em tentação, e me livre do mal. O mal que habita por onde piso e me cerca sem ninguém ver.
Eu dependo de dependências. Me fortaleço em busca de uma nova rota, um novo caminho, sem pegadas, sem desvios, e lá vou eu vivendo em metáforas, e lá vou eu vivendo em teoremas e teorias. Mas que porra é essa se não um sonhar? Me deixem sonhar!

Nada que eu conheço é tão arriscado que apenas ser o que sou. Tenho um profundo respeito e medo de mim. Sim, eu, eu e mais eu, afinal aqui reino em silêncio. Ou talvez nem tanto assim. Mas entenda, nada ou ninguém eu temo tanto quanto à mim.
Eu deveria manter esta porta aberta. Agora que acordei assustado, e se eu não conseguir mais respirar? Se eu trancar não serei salvo, ou serei um pouco mais esquecido, dentro do meu próprio casulo. Três, quatro passos, lá estou atirado debruçado no corredor frio e quieto. Sei que estão ali, mas é como se não estivessem. Tudo isso é tão solitário, tudo isso é tão triste.
Vivo três, quatro vidas, em uma única alma. Esta tão saturada e cansada. Sim, já sei que isso é prejudicial, não preciso de conselhos, nem de fórmulas ou receitas, e por enquanto é meu pesadelo, até eu conseguir acordar. Me deixa.
Vou contar um segredo...
...amanhã, será diferente. Eu peguei um pequeno espaço e plantei uma semente. Ninguém viu, ninguém notou, ninguém sequer sabe. Mas eu sei. E estou ali, naquele espaço que ninguém olha, cultivando e cuidando. Ela está tão bonita. Germinou e aponta seus primeiros ramos. Ninguém sabe. Que pena. Eu sei. A flor mais linda que já vi.
O sabor da minha vida é agridoce. Agrada e desagrada. Complementa ou separa. Eu gosto de agridoce, tem um pouco de tudo.