Serventias

Esta é uma porta entreaberta, encostada. Basta um empurrão e você pode entrar. Ouça o ranger das antigas dobradiças, madeira velha, dissolvendo com o tempo, cheiro de passado. Talvez você não queira sujar suas mãos ao encostar. Marcas de dedos, marcas de mãos inteiras. Alguém já esteve ali. Você vê unhas, rasgando os entalhes, alguém com raiva, que empurrou com força tentando entrar mas desistiu. Pedaços estão faltando, arrancados, como se quisessem levar como lembrança ou tentando destruí-la.
Um empurrão ela avança e teima em voltar, se fecha sozinha. Não há trincos, fechaduras, chaves. Apenas a força natural de quem sempre se manteve ali semi aberta. 

O cheiro é forte, cheiro de dor. Clima pesado e denso, tão denso quanto o que se esconde em seu interior. Uma fenda não revela luz, é escuro e frio, e ao mesmo tempo atraente. O que há de tão secreto? O que se esconde ali.
Há escritos em seu corpo, mensagens sem assunto, autores desconhecidos. Você vê paixão, palavras de amor, dedicatórias. Você vê recados, meias palavras, convites. Rabiscos sobre rabiscos. Seus olhos descem quase ao rodapé, e você percebe chutes, pedaços quebrados, alguém que não conseguiu entrar. Há dizeres com ódio, raiva, rascunhos de frases e desenhos inacabados, fotos rasgadas e jogadas ao chão, desfiguradas. Quem quer que seja passou por ali com muita vontade e terminou com muita frustração. Não percebeu que a porta estava sempre aberta a quem tinha coragem e malícia para entrar.
Corra a mão sobre os detalhes, farpas ardem ao encontro dos dedos.
A parte de cima é mais pura, menos violenta, há versos e poemas, inteiros. Foram deixados ali por quem foi capaz de entrar, sentir, respirar. Eu vejo amor, satisfação, alegria. Prazer por ter estado ali, feito parte de um momento ou personagem de uma história longa, cravou e marcou seu nome.
Estranho, sim, estranho. Não há nomes rabiscados nesta porta. Iniciais, pseudo-assinaturas que permitem dedução, mas não há nomes. Vejo setas e círculos, apontam a alguém, ou à mim. Talvez eu não entenda a mensagem ou talvez foram feitas para que eu realmente não decifrasse.

Eu nunca tranquei, reformei, substitui este local. Ela continua a mesma, mesma porta. Tinta velha, sem cor, desbotada e maltratada. Ainda entreaberta, ainda sem trancas.
Seja bem-vindo, bem-vinda. Mas não empurre, encoste. Não chute, não destrua mais do que já está. Não tente fecha-la, ninguém jamais conseguiu. Se por vontade quiser deixar um recado, arrume um espaço. Talvez ali, ao lado de quem você não goste, talvez ache alguém que te traga lembranças boas, ou um espaço só seu, talvez um pouco mais difícil este ultimo.
Um empurrão e você entra. Pode sair sem ver nada, como pode levar consigo mais que um detalhe. É escuro e turvo para aqueles que não enxergam de olhos fechados. Você é capaz de sentir o ar úmido e frio? Um calafrio na espinha. Você está indo bem. Parabéns.

Aqui dentro guardo coisas tão reais que tranca-las seria me fechar pra sempre onde ninguém fosse capaz de achar. Eu poderia fazer isso...
...mas por enquanto, se quiser saber mais, basta empurrar.