Valdir Silva Jr

"O que tenho medo é de não viver. Não de errar, de sofrer, de perder, ou morrer. Mas de não viver."

Aborto

As vezes eu só queria sumir, evaporar. Em um piscar de olhos deixar tudo aquilo que me faz mal, pra trás. Tudo que me faz mal. 

A dor em minha cabeça aumenta, porque a inconformidade borbulha e transborda. Até quando? Até quando?!

Eu só quero não precisar nunca mais. Só quero não contar nunca mais. Porque no fundo ninguém precisa do que preciso contar. 

É triste e desnorteante. O que sinto é um oco espaço sendo sugado em uma espiral pra dentro de mim mesmo. Um tornado de raivas. 

Ganância que não nasceu em mim. Ódio que não nasceu em mim. Egoísmo que não nasceu em mim. E tudo isso me impede de dar bastas e chegas. 

Um balde de água gelada com o peso de um iceberg. Um recuo forçado, como se acoando sem jaulas, como se um abismo simplesmente brotasse à frente dos meus olhos. 

Queria eu talvez ter sido o repúdio e a sobra. Um verme rasteiro que não se ergue. Uma negativa da bênção, um aborto. Um esquecido por querer esquecer. 

Queria preencher tudo com raiva, só com raiva. E transbordar em contextos o contexto de desamparo. Eu sou parte de tudo, ou não?

Palavras que são só palavras, junções de sílabas sem verdades. Princípios básicos da nobre arte de querer sem querer. Oferecer sem oferecimento.

Eu sou um vilão. Por viver assim, por estar assim, por querer assim, por pensar assim. Sou um vilão que não conjuga verbos de gratidão. 

As vezes eu só queria sumir, evaporar. Desistir e apagar. E que minha existência fosse pálida como o reflexo pessoal do meu ser.

Eu estou calado.

Indícios

Se as noites em claro me trazem dúvidas, me fazem cair, sucumbir, de tempos em tempos ir e vir.  E lá fora há um espiral de fraquezas, um mundo do cego, perambulando em compasso pelo rastro do fracasso. Se a cada noite vazia me enche de esperança, de daqui ir, e pra lá surgir, e se nada mais me segura ou sugere, o que eu aceito ou acredito é inerte. 

Lavo meu rosto, minha alma, meu dorso, cansado de arranhões, de chacoalhões. Eu reduzi a luz, refleti à mim mesmo sem capuz, e deste reflexo surgiram outras e outras portas. Espelhos de mim, caminhos sem fim, e a cada noite em claro eu vislumbro um fim. Me fecho, me liberto, suspiro, alívio. Grito, grito, grito, mas e daí? 

Tenho as frases pra me dopar, as pegadas que eu mesmo fiz. Marquei com confetes coloridos, não erro a trilha, não desvio o rumo, não misturo sementes, um riso doente. É o que me resta, vagar no silêncio, passageiro, sigo, sigo, sigo. 

Se freneticamente me sinto, ladeira a baixo, percebam a turbulência. Uma mente retalhada, uma centena de palavras, um susto real. Lá fora tudo clareia, todos voltam a existir, e você aonde foi, porque foi, pra quem foi. Sua mãe não está, seu pai também não, e todos os amigos de outrora dissolveram grão a grão. 

Sinto dor, sinto a flor, tem rancor, sem pudor. Culpado de cada ato, ato de ser culpado. Se eu sofro, é calado, e nada disso importa.  Entorta, e eu sigo em frente. 

Se eu pudesse escolher, tinha feito igual, diferente de mim, mas tudo igual. Se eu quisesse parar, não poderia nem de perto, ser feliz ou amar. 

Nada, nada, nada.  Eu vou saber onde chegar. 

Me deixe...

Há um calhamaço de dúvidas que nem eu mesmo criei. Eu não sei a resposta. 

As palavras se foram, ou a razão sessou. Um silêncio dentro de mim refletiu aqui, e a cada ano que foi se passando, quase uma década, houve a morte da esperança. 

De resposfas mal dadas à verdades cruéis. Tiros no pé e sorrisos fiéis. Eu sentia a necessidade, e ela sufocava até me trancar aqui, e então eu registrava um fúnebre auto-depoimento. 

Cada noite, cada dor, cada valsa com a solidão. Eram dias e dias, meses e meses, um infinito abismo do silêncio.  

Escrever não é um dom pra mim, um talento da criação. Escrever e um espelho, um reflexo da minha alma. Um bizarro prolapso mental onde exponho do avesso as toneladas de pressão que esmagam minha consciência dia após dia. 

A dez anos atrás, talvez os gritos representassem a liberdade de uma mente livre para sonhar, livre para questionar a violência com que a vida nos amarra, nos sufoca, e eu via tudo isso de fora. Fui engolido abruptamente pela necessidade de encarar a realidade.

Hoje em dia, eu não me encontro mais. Aquela mente se foi. É difícil pra mim estar aqui, e não encontrar mais o jeito de dizer o que tenho aqui dentro. Talvez eu tenha me perdido, de mim mesmo.  

Desculpa.


Sobre hoje

Se esses olhos enxergassem lampejos do futuro, o que ele teria feito? Se cada passo pudesse ter sido dado certo, e cada dor evitada mesmo antes de acontecer. Como seria?

Teria feito escolhas melhores, dito frases menores, aprendido tão fácil. Teria sido um exemplo. 

Teria evitado que meus pais sofressem, que meus amigos se fossem, que minhas vontades se perdessem. Que uma dor sequer doesse. 

Teria chorado mais, rido mais, aceitado que a vida te escolhe e não você escolhe ela, e que tudo vai ser trilhado quer queira você ou não. E muitas coisas no final podem dar certo. 

Teria abraçado meus tios, minha irmã, minha vó, meu cachorro, e deixado um último sorriso antes que não pudesse deixar outro sorriso. E que mesmo sem eu saber o que dizer, eu já teria dito que era incondicional.  

Teria apoiado cada escolha de cada amigo, mostrado a eles que tudo que eu sempre quis foi que pudessem ter a coragem que eu tive, e que vivessem junto comigo tudo que eu sonhei com eles. 

Teria mostrado aos meus pais que eu posso não ser nada do que eles gostariam que eu fosse, mas que qualquer coisa que eu seja, serei do fundo do coração que eles fizeram bater. E ele bate justo, verdadeiro e único. 

Teria entendido muito mais fácil e rápido que uma família pode ser refeita, e que irmãos e mães não precisam ser do mesmo sangue, e o que eles representam pra mim não tem palavra que defina.
 
Teria mostrado que por mais duro e frio que as vezes eu possa ser, eu só quero o bem, e que muita gente que eu perdi por ter sido assim, ainda  poderia estar aqui...

Se esses olhos enxergassem lampejos do futuro, talvez eu chorasse rios de arrependimentos, ou batesse palmas para tanta coragem e provação dentro de um único ser. 

Que o destino me guie até meu último suspiro.