O Esquecimento

Quando eu dei meus primeiros passos em sua direção, estava convicto da vitória. Não antes de ter passado duas, três vezes à sua frente, espreitando com ar curioso., mas quando fixei os olhos e enchi o peito de coragem, eu era soberano.
Porta entreaberta, um estranho brilho reluzia e ofuscava se olhado diretamente. Me peguei curioso pelo seu formato triangular, diferente do que antes tinha visto. Um ranger, estilhaços ao chão, sinto pequenos cortes em meus pés descalços, uma pequena dor, pífia diante do que me motivava.
Não há luz além da que me ofusca a vista. Não há velas, candelabros antigos, abandonados. Preciso me achar ali, preciso que meus olhos se acostumem com o ambiente e seus contrastes.
Três dedos fecham a porta logo após eu passar. Um suave "click", e a luz se foi.

Sinto um ardor que vem de baixo para cima, eu desisti de caminhar e agora só arrasto os pés. Eles doem, como deveriam doer. Há uma brisa fria e áspera tocando meu rosto, como uma pequena poeira. Sinto que me suja a pele e lixa os olhos, se eu tentar limpar, piora.

Com as mãos eu toco cada pedaço, com a visão do triângulo de luz na minha mente, recriando uma imagem, tentando achar de onde poderia estar vindo. Sinto entre os dedos, na palma da mão, objetos e formas que regurgitavam lembranças embaralhadas, isto me confundia.
O mais estranho é que eu não conseguia voltar. A cada passagem, as formas desapareciam, minhas mãos não mais as achava em meio a escuridão. Era o começo do fim.

Cansado, quase que suando dentro daquele lugar gelado, perdi a noção do tempo. Teriam se passado horas, talvez dias, anos...
O que me impulsionava era a tentativa de entender o que restou ali, qual a ligação entre as formas que eu tocava. Perdi a fome, curiosamente a sede. Eu não sentia mais necessidade dela, aliás, eu nem me lembrava.

Decidi não mais tocar nada, e bruscamente me giro a direção oposta, caminhando em passos largos de dor, mãos estendidas como as de um recém nascido pedindo proteção. Sim! Há algo ali que meus olhos decifraram na penumbra! Algo que me fez esquecer por um momento qualquer dor e me puxava, me puxava.

Formas sutis, arredondadas, sinto veludo, alguns pequenos filetes de madeira.

Porque bem no centro? E porque me parecia tão novo dentro daquele frio e turvo quarto?

Guardião

Preciso separar o que sinto do que é real. Tirar de dentro de mim este universo de tentativas e erros, de lutas e batalhas sem fim. O que vejo, não mais ver, o que toco, não mais sentir, o que falo, não mais soar, o que faço, não mais ser notado. Deveria tomar mais cuidado em viver, em fazer com que minhas ilusões sejam meus erros, e ser mortal. Simples. Ou talvez apenas não existir mais aqui. 

Quando eu não tiver mais nada a dizer, e as palavras se esconderem dos meus lábios, e um vazio pleno tomar conta da minha alma, eu teria sido derrotado ou vencido? Eu teria dito a mim mesmo que não há solução, é impossível. Dreno minhas forças a cada tentativa, me enfraqueço, me torno mais e mais insuportável e intruso. Luto a cada segundo, eu batalho, mas é sem méritos. Talvez eu teria aceitado mais.

Não posso ser mais o meu reflexo. Deduzir que serei retribuido como retribuo. Eu grito mas para quem? Existem tempestades imprevistas e onde eu vou perder, e não existe saída. Preciso matar aquilo que reage por dentro. Esperança? Força? Insistência? Deve ser subtraída e calar-se. Alguém me acorde deste pesadelo ou me deixe em um profundo coma, onde o vazio preenche todos os espaços.

O mundo aqui é sutil e voraz. Te devora em silêncio. As palavras aqui são ditas em um circulo, rebatidas. Talvez eu chore seco, escorra ardido, me trai e me maltrata, e por isso que eu vivo aqui. Sou apenas cúmplice dos meus próprios pecados, condenado a esbravejar e encolher dia após dia. Apenas cúmplice de uma historia sem personagens ou roteiros, onde eu vivo o herói e o vilão e salvo a mim mesmo. Todo santo dia. 

O que eu digo pra você é tão puro e se torna tão invisível, que me faz querer explodir a cabeça em uma rocha. É tão sensato dentro do seu ninho de confusão, tão melhor que faz mal. Mas eu estou de um outro lado, olhando dentro de você, e é tão transparente pra mim, tão condicional e simples. Todo este tempo eu estive escrevendo sua história e nunca foi lida. Agora tudo é tão vazio.

Cada vez mais eu sinto a solidão das verdades. As faces se vão, esvaindo-se, deixando apenas marcas sem expressão. Por favor, o que eu deveria dizer? De onde eu deveria recomeçar? É claro que eu me sinto mais incomodado dentro de um universo do avesso. Eu estou em um salto de fé sem controle, sem fim, mergulhando no infinito. 

Hoje eu pensei em desligar a razão e vasculhar o submundo da ilusão, fazer com que eu semi-morresse, deixado levar por tentadores métodos de morrer. Hoje eu procurei como sangrar, e não achei saída. Acho que nunca haverá, mesmo que eu apenas ande sem olhar para trás, tudo vai ser carregado. Uma bagunça sem ordem, uma desordem diária.

Só eu respiro meu ar. Luto contra meus demônios e anjos. Reluto contra as noites claro tentando montar todo este labirinto e achar a saída o mais rápido possível, mas ela está aqui, dentro de mim? Ou um borrão se formará quando cada peça finalmente se encaixar? Eu pergunto porque não questiono. 

Alguns acordes, a música que ecoa é triste. Sinfonia da morte e da ilusão acompanha cada pedaço do meu desespero. E é tão fria e vazia, eu escuto seu sarcasmo. Por hoje eu sinto que cansei.

Feche a porta por favor.

Sincronismo

Eu queria paz. Branda, silenciosa, imune a dor, a gritos, estrondos, conflitos. Queria uma brisa leve do mar, um som contínuo, indo, vindo...Queria poder respirar sem forçar, sem suspiros ou fadiga, sem pressa. Fechar os olhos e absorver só aquilo que cativa, que poderia me revigorar, me renascer, me por em um lugar neutro, completamente neutro. Eu quero só isso.
Hoje, ontem, amanha. Não quero competir, lutar, superar, conquistar, derrotar, nada, eu não quero nada disso. Eu quero apenas poder sorrir sem motivo. 
Algo que me levante aos céus, me tire inconscientemente palavras boas, satisfação e glória. Um conjunto perfeito de fatos, fotos, afagos. Um sucesso invisível e imortal. Deste lugar ninguém me tiraria tão cedo. Olha eu aqui, olha eu aqui. 
Quando eu registro aqui eu deixo verdades. Doloridas, alegres, eternas ou momentâneas. Eu deixo um legado. Um livro aberto sobre o que é sobreviver acordado dentro de pesadelos, sobre o que é caminhar entre lobos e cobras, o que é sofrer calado. Eu puxo o que aprendi, escrevo como posso, bem ou mal, certo e talvez errado, me faço entender. Eu acendo a luz que se apaga dia após dia, hora após hora.
É quase sempre assim. Eu começo bem, e me deparo com a desilusão. Grito, ecoa, grito, se cala. Eu mais que ninguém sou só um escravo a mercê de mais um dia. Eu tento separar tudo, mas as vezes é muito muito muito complicado.
Desanimado, deixo a fadiga tomar conta de mim. Ela consome como droga, destrói por dentro lentamente, te envelhece, te seca, te definha. Leva sua imunidade, sua juventude, sua pulsação. Eu estou refém da belíssima fadiga. Ela vence, eu sou o perdedor.
Eu estou longe de casa, ou estou perto? Deixei lá quem me deixou, muitos daqueles que eu amei. Eu perdi, eu perco ainda. Perdi pois talvez nunca tive, porque não quero o que todos querem, eu procuro por mais que posso ver, talvez eu não veja nada do que quero, mas eu sinto, eu continuo sentindo. Eu aqui estou seguro e sozinho, estou salvo e condenado, respirando e doente.
Talvez eu passe por essa vida sem ser notado como eu queria. Talvez após isso, eu até seja, mas nunca irei saber. Não falo de reconhecimento, não falo de fama, falo de respeito e consideração. Talvez quando eu me for, tudo fique claro para aqueles que hoje não enxergam, não notam o tamanho de tudo isso que esta aqui, não notam o tamanho da minha grandeza, essa tal que me leva e traz sempre de volta. Eu sempre estou aqui, e você talvez nunca percebeu o quanto pode ser bom, só vê o mal.
Não me diga que sou incompreendido, não me chame de rebelde, não me menospreze, não use das minhas palavras contra mim, não me engane, não me desdenhe. Pense em mim como algo incógnito, sem regras, sem descrição, sem rótulo. Algo que você admira por desconhecer e por querer entender. Eu sou apenas isso.
Guardo comigo muitas passagens, historias, momentos, pessoas. Muitas pra sempre ficarão vivas e ao alcance quando eu quiser, como eu quiser. Talvez outras desapareçam com o tempo, com a necessidade, com a falta de cuidado em se manter aos meus olhos ou alma. Eu nunca esqueço quem me soma. Quem me vê como soma. Quem me inclui e não agrega. Eu estou aqui para fazer o bem mesmo sem você acreditar.
Tudo isso porque eu queria paz. Aquela, do começo. Eu queria paz. Que ela venha sem que eu precise mais e mais tirar. Que ela chegue antes de mais um amanhecer, antes de mais uma primavera se fazer, antes que eu deixe de crer. Sirvo como cobaia, como exemplo, como motivo, como chaga. Sirvo como peça, pedaço, trapo, estilhaço. Eu só quero a paz.
Não sou poeta, não sou artista. Não sou santo, não sou sequer anjo. Não sou nada além do mesmo. Sou eu mesmo. Obrigado.