Ontem Eu Morri

Não sinto falta de nada, de ninguém. Saudade é transparente, me pergunto onde ela está, como que preencheria meu peito se existisse. Hoje eu morri e por isso ouço apenas um vácuo, sem tato, sem odor, sem cor ou brilho, é tudo silencioso.

Não sinto falta de nada, de ninguém. Eles estavam ali, todos ali, e de cima eu via suas almas, seus sorrisos, de um plano inerente ao real, ali estava eu.
Essas pessoas, nunca se viram, nunca se falaram, não existiam para com as outras antes do momento que eu as uni, conectei cada vida à outra, transformei estranho em conhecidos, conhecidos em amigos, amigos em família.

Não sinto falta de nada, de ninguém. Mas como em um rolo de filme vejo a vida passando por meus olhos e me trazem recordações de algo que talvez só tenha existido pra mim. Onde eles estariam se não fosse ali? Eu sedimentei cada pedaço desse caminho. Hoje eu não sei mais voltar por ele, ou pra ele.

Não sinto falta de nada, de ninguém. Vi como se todos estivessem celebrando o futuro após minha morte, exatamente o que aconteceria se amanhã eu não estivesse mais aqui. Talvez isso me orgulhasse, saber que eu consegui unir algo impensável, talvez ninguém seja capaz de parar e sugerir um brinde, um minuto de lembrança de quem foi primordial pra tudo isso. É pedir demais.

Não sinto falta de nada, de ninguém. E precisa ser assim para que eu consiga caminhar, para que a dor sirva de impulso, e lembranças se atrofiem e coagulem, sem chance de me ferir mais. Vivo as circunstâncias do que acredito ser o meu caminho, só atravesso antes de esperar fechar. Vou até o limite.

Não sinto falta de nada, de ninguém. Por mais que eu procure por ela, que eu tente concordar que é necessária, ela se esvaiu de mim. A felicidade não me faz feliz, me anestesia mais e mais, dentro do peito e da mente, me isolando. Eu vi todos ali celebrando a vida e me afundando no esquecimento, pá sobre pá.

Ontem eu morri sem avisar, bem longe dos olhos de todos, no silêncio, sem contato, sem lágrimas ou soluços de choro.

Foi só mais um golpe em alguém acostumado a sentir pancada, dolorido.

Eu fiz minha parte, mesmo que ela seja invisível à vocês. O resultado já se consumou. Ontem foi o reflexo.