Retrato IV

Aqui eu me desafogo, esvazio os surtos, descarrego o peso de falar demais, enxergar demais, me preocupar demais. Desse jeito me alimento, me sinto agoniado, me puno, interpreto seus erros, absorvo as chicotadas e sobrevivo.
Aqui eu me perfaço, me faço descobrir, levo comigo aqueles que acreditam, que namoram as palavras e se apaixonam pelo intrigante. Real e cruel, assim que eu sou. Doce amargo que transborda em uma correnteza de dúvidas.
Aqui eu me enxergo antes mesmo de descobrir, prevalece minhas verdades sem contestação, com lutas e guerras, paz momentânea e profana. Eu sou imortal, não em carne mas em gestos, em luta e princípio. Regurgito as fases e recomeço sem medo.
Aqui eu luto sem armas, tudo vem de dentro, fere como faca, marca como tatuagem, prolifera, expande, impregna. Por mais forte que você seja, eu te derrubo, rasteiro e sempre, talvez cruel e passivo. Vença-me e eu abdico à tudo.
Aqui eu marco seus passos, concerto os meus, corrijo os seus, alinho meu universo e meus satélites, livre arbítrio, dentro da minha jornada. Marco o que me dói, me suga, me sangra. Real e repetitivo, mas necessário.
Aqui eu reescrevo suas crenças, releio as minhas, desfaço meu sombrio pesadelo e
remonto em pequenas poesias, poemas, contos e fatos. Meu renascimento como homem, maduro e imaturo.
Aqui eu não aceito o óbvio, não sou julgado por tolos, desprendo minhas amarras e transformo em vida, tudo aquilo que talvez você quisesse dizer. Eu, mais que eu, escravo de mim.
Aqui eu releio e leio, minhas passagens, minha vida forjada e falsa, meus erros e lições aprendidas, e repetidos gestos e frases, que me seguem, me levam a fazer e a cumprir o que devo cumprir sem medo. Destino.
Aqui eu e ele andamos juntos, sua sombra meu guia, meu caminho no escuro e na imensidão que me banha, sem o alcance de seus olhos, sem o reconhecimento de minhas palavras, sem ser único.

Aqui eu, somente eu, prevaleço.